segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Dancing With Myself #2

Observava meio distraída os veículos presos no engarrafamento comum àquele horário. Pensou naquele mundaréu de gente parada lá fora. Todos na mesma condição. Será que eles sabiam? Deveriam saber, ou ao menos suspeitar. Procurava uma coisa qualquer a que se apegar. Através da janela do ônibus viu o mar, o sol que se punha, as crianças que faziam caretas dentro dos carros. Não conseguia, não conseguia. Imaginou-se náufraga. Pressentia um arrepio. Quanto tempo havia que conhecia aquele corpo? Tempo suficiente para adivinhar o que estava a acontecer. Logo viria a secura na boca, as mãos ficariam trêmulas, ficaria sonolenta, a cabeça giraria. Aquele enjôo chato também viria a dar as caras? Reclinou-se mais ainda no banco e procurou aquecer-se no que restava de luz naquele dia que também encerrava seu expediente. Abriu o livro que trazia nas mãos, passou a vista sem se prender em nenhuma frase. Já não havia meios de evitar.

Desejou um estupro. Seria mais fácil explicar. Um estupro poderia distraí-la do mal-estar que sentia. Arrumar sabonetes por data de validade. Não esquecer do descanso de copos. Você nunca fica. É, eu nunca fico. Não diga droga! Diga luz! Lembrou de Rubem Fonseca: Não diga sovaco, diga axila. Na próxima encarnação quero vir homem, desses que dizem ‘buceta cabeluda’ com o mesmo gosto que as come. Não, Vó, não parei de fumar, se eu parar de fumar a única forma de obter prazer se resumirá a peidar e tirar meleca, mas obrigada por pensar em mim. Tá ocupada? Não, nunca estou. Fechou o livro e reparou que na capa estava desenhado um homem que atirava na própria cabeça. Gerald Thomas me acharia um clichê, no pior sentido que pode haver para um clichê. Comprar uma infinidade de papéis coloridos para um curso que já deveria ter concluído há tempos. Tire os sapatos antes de entrar, tire essa roupa de rua, seque o blindex após o banho, assim conservaremos tudo limpo.

Desceu perto do cinema. Buzinas, mães com seus filhos na saída das escolas, homens com pastas, pipoqueiro, alguém tentava vender canetas no semáforo. O mundo estava em silêncio. Não, o silêncio era seu, só seu. Meia entrada, por favor. Abriu a bolsa, estava sem a carteira da faculdade. Deixa pra lá. Acendeu um cigarro. Vai ser escritora? Não, vou ser puta – quis responder ao irmão. Te dou todo o meu apoio. Imagino que sim. Pensou em ligar para a mãe e dizer: Cínica é você! Dar flores quando uma menina menstrua pela primeira vez, isso sim é cinismo! Esperaria pela próxima visita, não havia telefones onde sua mãe se encontrava. Apenas uma mulher pode educar outra mulher. Precisava lembrar de agradecer por ter recebido mais que anticorpos do leite materno. Quanto é o curso de pintura? Ligue às dezoito horas. Outra viagem perdida. O problema não era sair de casa, era voltar para casa. Já não fazia questão de um estupro, contentaria-se com uma falta de energia elétrica. Suas meias pretas estão no armário, tenho certeza, eu as pus lá.

Alguém ligou a televisão num volume muito alto. (Re) descobriu uma colagem sua num pedaço de pintura de Santa Rosa. Mesmas cores, mesmas formas. Não havia nada de original no seu mundo. Por um momento achou que fazia parte de uma sociedade secreta, uma irmandade onde os membros jamais poderiam falar abertamente entre si e limitariam-se a cumprimentos silenciosos, meros olhares furtivos. Reconheceriam-se e participariam juntos de uma batalha velada cuja única finalidade era continuar lutando e a única condição para tornar-se membro era ter uma vagina . Faça por onde que eu te ajudarei. Se está me escutando, Deus, saiba que se fosse você a trabalhar em dois empregos e tivesse por obrigação acordar de madrugada para sustentar os filhos, também você não teria tempo de acreditar em si próprio. Sentiu um hálito quente. Quando foi mesmo? O primeiro foi seu pai, o segundo seu irmão, o terceiro foi aquele a quem Teresa deu a mão. Certa vez tentara, em vão, explicar o grotesco de tal cantiga. Acusaram-na de feminista. Persistia em acreditar que discutir feminismo pressupunha a existência de um machismo. Ambos os conceitos co-existiam por mutualismo. Não era feminista, ou pelo menos, não queria ser. Teresa deu a mão a um homem e o levou para o quarto. Cantarolou aquela música, Marvin, enquanto fumava mais um cigarro para ouvir logo em seguida seu pai reclamar do cheiro da fumaça. Recolher a louça que secava dentro da pia da cozinha. Por que ele faz isso? Assim como nunca dissera que a amava, nunca disse que a odiou. Morreria sem receber qualquer manifestação de atenção.

Queria beber alguma coisa. Não me fale em obrigações, preceitos, pecados e divindades. Não, é melhor não beber. O telefone tocou. Quantas vezes esse maldito telefone haveria de tocar antes de voar pela janela? Pai, ligação para você. Fez café. São nove horas da noite! Assim você não vai dormir e só vai acordar pra lá de meio-dia! Certamente. Serviu a janta. Quer dizer que não vou te ver hoje? Entrou no banho sem olhar-se no espelho. Lembrou das mãos da sua tia ligeiramente deformadas por causa da artrose e da avó que tolerou a infidelidade do marido por anos a fio. Podia cair uma chuvinha... Quando era adolescente e voltava da escola, fazia o favor à empregada, ao seu padrasto e a si própria de se trancar no quarto. Girava no escuro de braços abertos. Na hora costumeira em que seu padrasto saía para a rua, também ela saia do quarto. Ia até a sala provar tequilas. Era feliz assim. Oi, disse seu irmão, tirei minha carteira de motorista. Foda-se. Agora faço meus relatórios do trabalho em inglês. Foda-se. Ué, cadê meu colchão antigo? Foda-se.

Acordou no meio da madrugada com frio. Nunca mais te vi sentar naquela prancheta para estudar. Vamos viver de brisa, Anarina e eu. Dia desses o avô aconselhou que seria melhor rifar o enxoval que estava encaixotado lá na casa dele. Já que você não quer casar mesmo. Sentiu aquela agonia crescer novamente. Foi até o banheiro e tentou vomitar. Queria chorar sem ter que explicar por que chorava, queria tomar mais um banho. Pegou uma xícara de café e sentou para ler os e-mails, alguém dizia que estava frustrado. Fechou o laptop, catou as moedas e procurou por um boteco amigo àquela hora. Buscaria por aquilo que Hemingway sabiamente chamou de O Solvente Alquimista, elixir alcoólico, vulgo whisky, solvente para os problemas e que num ápice transforma o nosso ouro bruto em merda. Discordava apenas da ordem, para si, o tal solvente converteria a merda bruta em ouro, apesar de saber que nem tudo que reluz é,de fato, o mais nobre dos metais. Culpa. Se eu for violentada, tentarei gozar. Por que o mundo não desaparece? Pare de imaginar coisas. Existe um momento na vida em que é preciso decidir o que vender, ponderou.
Ouviu os bêbado - anda, conte-me alguma coisa antes que eu desabe. Deixar recados na geladeira para papai. O céu está estrelado, amanhã vai fazer sol. Um dia acreditou que seria alguma coisa que valesse a pena. Merda de cigarro sem gosto! Não sabia pra onde deveria ir. Você não era assim. Pensar numa boa desculpa para desmarcar o encontro do dia seguinte. Teve vontade de sentar na calçada. Quanto eles pagavam naquele lugar mesmo? Encolheu-se nas cobertas. Fazer panquecas para o almoço.

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